#19 - Quem desconfia fica sábio
Sobre o que fazemos com Dom Casmurro e o que Dom Casmurro faz com a gente | Indicação de literatura infanto-juvenil
Esta semana alguém postou no grupo dos Bons Casmurros, o clube de leitura que eu ajudo a coordenar, uma postagem de Instagram que dizia que um advogado publicou um livro em que responde, em tese a partir de uma “senha jurídica” deixada no texto por Machado de Assis, se Capitu teria ou não traído Bentinho no clássico Dom Casmurro.
O foco do livro é demonstrar a importância do Direito na obra do Bruxo do Cosme Velho, mas, é claro, a parte sobre Dom Casmurro se destaca na maioria dos releases sobre a obra, já que essa é uma dúvida que perdura há mais de 120 anos.
Só que a graça do livro está justamente na impossibilidade de dar essa resposta em definitivo. É a dúvida, a incerteza (nossa e de Bentinho) que faz o livro ser tão bom.
Nesse sentido, Machado de Assis foi muito certeiro ao decidir que a história seria narrada em primeira pessoa pelo próprio Bentinho, porque isso garante a permanência do mistério. Qualquer “senha jurídica” ou informação que o leitor tenha sobre a relação entre Bentinho e Capitu, e entre Capitu e Escobar é transmitida justamente pelo homem que está se sentindo traindo, Bentinho, e que pode muito bem estar vendo pelo em ovo, como se diz por aí.
Na hora que eu vi a postagem no grupo, a primeira coisa que eu senti foi irritação. Eu pensei: “mas que raio de mania que as pessoas têm de tentar explicar tudo. Por que não conseguem deixar essa questão no campo da dúvida, do indefinido?”. Mas, ao mesmo tempo, achei bonito e curioso que, mais de 120 anos depois da publicação, Dom Casmurro siga sendo debatido dessa forma, e siga como objeto de pesquisa para livros e debates acalorados (a seção de comentários dessa postagem estava quentíssima, como em todas as vezes que Dom Casmurro é assunto).
Lembrei também do curso da Noemi Jaffe que estou fazendo na Seiva (em parceria com a escrevedeira), o Imaginar para escrever. Logo na primeira aula, Noemi cita Sidarta Ribeiro, que diz que estamos vivendo uma crise da imaginação, uma crise do sonhar. Noemi trouxe algumas reflexões sobre os motivos disso e, entre eles, menciona justamente esse nosso apego às certezas, às estruturas fixas, ao início, meio e fim.
Não ter certeza sobre o que aconteceu causa um incômodo, mas é esse incômodo que mantém o livro vivo e dinâmico até hoje. A gente só precisa soltar um pouco essa obsessão que temos pelas certezas e aceitar que, em literatura, há múltiplas verdades possíveis. Como o gato de Schrödinger, a narrativa de Dom Casmurro também está em uma caixa, na qual Capitu traiu/não traiu Bentinho. As duas “verdades” coexistem, não sendo nenhuma delas a definitiva. Dom Casmurro incomoda porque é essa caixa fechada. Você não pode ter certeza, você observa, desconfia, busca sinais. Mas a caixa permanece fechada (mais uma vez: efeito obtido pela escolha perfeita de narrador que o Machadão fez).
Isso ecoa a fala de muitos artistas e críticos de que a literatura - e a arte, no geral - precisa incomodar de alguma forma. Às vezes é um incomodozinho pequeno, que faz pensar a partir de um ponto de vista que não seria o seu, te faz ver o mundo de um outro lugar. Outras vezes é um desconforto mais intenso, quase palpável.
Eu concordo. A minha sensação é que, se não incomodar, se não mexer com as nossas certezas, se não deixar a gente ligeiramente reflexivo, no fim, não vai permanecer na memória.
É claro, às vezes a gente só está procurando um prazer passageiro, uma satisfação momentânea. E tudo bem. Nesses casos, acho que essas fórmulas prontas funcionam bem - narrativas com início, meio e fim bem definidos, personagens quase planos, sem sustos, sem incômodos, tudo fluido e satisfatório.
Veja bem, não estou criticando esses livros, ainda que não sejam a minha preferência. Tenho até amigos que lêem. Mas minha impressão é a de que esses livros se diferenciam tão pouco entre si que ninguém dedicaria mais de 100 anos de questionamentos a eles. Eles cumprem aquilo a que se propõem, sim. Quem gosta desse tipo de livro termina a leitura satisfeito e vai para o próximo quase que imediatamente, o sabor deles existe no momento da leitura, não após. Eles não perduram, não têm retrogosto.
Para mim, para um livro perdurar, ele precisa incomodar um pouco, você precisa continuar pensando nele depois de fechá-lo. Precisa querer falar sobre ele com alguém, dividir, perguntar. Precisa ter dúvidas, fazer pesquisas sobre o que outras pessoas - críticos, estudiosos, o que for - pensam sobre ele. Um livro que incomoda permanece com você um pouco mais.
Esses livros ainda têm o benefício de deixar nosso olho crítico: a gente desconfia, olha de novo. E, como já disse o Guimarães Rosa, provavelmente inspirado em sabedoria popular, “quem desconfia fica sábio”. A gente vai aprendendo aos poucos a se desamarrar de certezas. Vai aprendendo a lidar com um mundo, que, no fim, é exatamente assim: indefinível, incerto, fluido.
Viva o desconforto que a arte tem o dom de nos trazer. Viva nossa habilidade de lidar com a dúvida.
A newsletter de hoje demorou para sair, porque a semana foi bem caótica por aqui. Eu estava preparando um projeto cultural para enviar para um edital e isso acabou drenando uma parte do meu tempo e da minha criatividade. Mas cá estamos, respeitando o compromisso de mandar textos semanais, tentando manter a constância da melhor forma possível.
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Uma curva qualquer do casco do caracol 🐌
Indicações, prazeres e curiosidades compartilháveis
🐌 A Valentina, de 8 anos, filha do Lucas, meu companheiro, me viu escrevendo esta parte da newsletter e quis saber o que era. Expliquei que era uma parte na qual eu fazia recomendações de filmes, séries, coisas bonitas… e livros, em especial. Daí, ela pediu para eu indicar para vocês o box os Gatos Alados, da Ursula K. Le Guin. São quatro livros que a rainha da ficção científica escreveu para crianças, com a história de alguns gatinhos que nasceram com asas (filhos de gatos absolutamente normais). Ela devorou a leitura super rápido, desenhou os gatos alados para pendurar na parede, e toda vez que falo sobre o clube de leitura que eu frequento ela diz que a gente deveria ler esses livros lá. A Ursula fez alguma mágica muito bem-feita nesse livro, porque a história realmente pegou a Valentina. Então fica a recomendação, especialmente para quem tiver crianças nessa mesma faixa no círculo de afetos.
(P.S.: Quem comprar na Amazon pelo link que está ali no nome do livro, possibilita que eu receba uma pequena porcentagem do valor do livro, sem que o custo aumente em nada para quem for comprar. Esse é um outro modo de apoiar a newsletter e meu trabalho criativo).
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Até a próxima!
Machado de Assis fazia mágica com as palavras. Ler seus romances é sempre impressionante. Semana passada terminei de ler Helena e ainda tá ressoando por aqui.