News #6 - Um poema com unhas
Brinquei de poema. Trago o resultado e um pequeno relato de experiência.
1.
sou muito ruim com nomes
de rua, mas sei chegar
por instinto
àquelas avenidas em que as árvores se abraçam
por cima da gente e
o cheiro de mato é cheiro
de adeus
manobro o volante com mãos antigas
minhas unhas vermelhas são
da minha avó
com suas pulseiras e correntes e brincos
e camisas floridas e os cabelos arrumados
o corpo gordo e grande sobre o sofá como se
sobre uma chaise longue
nunca vi minha avó sem as unhas feitas mas
minha mãe me disse que
no caixão
as unhas dela estavam com o esmalte todo lascado
meu pai não reparou
ele tinha perdido a mãe
eu, mesmo sem ter visto,
sempre lembro das unhas lascadas da minha avó
o que custava terem pintado
de vermelho?
2.
a suélen contou que a boneca da xuxa matava criancinhas à noite
com suas unhas afiadas
furava a garganta de suas donas e elas sequer podiam
gritar
isso foi na pré-escola e eu
escondi os olhos com força pra não imaginar
mas imaginei
eu não tinha uma xuxa porque era
cara
tinha uma paquita - que era quase
a mesma coisa -
os adultos disseram
na hora que cheguei da escola, roubei uma
lixa
da manicure da minha avó e lixei
os dedinhos da boneca até o
talo
tenho certeza de que salvei as nossas vidas naquele dia.
O poema acima foi escrito no dia 12 de setembro, há uma semana, portanto. Fiz uma oficina de poesia com o Rafael Zacca durante a FLIM - a Festa Literária Internacional de Maringá - e nada me disse que eu iria pelo caminho que o texto me levou, até que fui.
A proposta foi assim:
anotar uma coisa que você gostava de fazer e uma coisa esquisita que você fazia na infância (não lembrei de nenhuma coisa esquisita com recorrência, mas lembrei que, uma vez, lixei as mãos da minha Paquita para me defender da morte que eu realmente acreditava que ela poderia me infligir).
anotar uma coisa que eu gosto de fazer ou uma coisa esquisita que faço hoje em dia (lembrei do quanto eu gosto de dirigir por essas ruas repletas de árvores, nas quais elas formam quase como um túnel sobre a rua).
anotar o nome de alguém que já fez parte da sua vida e que não faz mais (por qualquer motivo que fosse, morte, distanciamento, briga etc.) A princípio trouxe meu avô materno, Nelson, que tenho como uma referência paterna positiva. Depois, quando surgiu a primeira imagem do poema - dirigir com unhas vermelhas - optei por colocar minha avó paterna, Cora, no lugar do meu avô, porque o poema teria uma lógica interna mais clara (por causa das unhas).
depois, a ideia era escrever 2 poemas, um com a situação da infância que preferisse (a que gostava ou a esquisita), outro com a situação do presente. A pessoa anotada deveria aparecer em ambos os textos, como lembrança, presença real, “espírito”, qualquer coisa. Seria o que, de certo modo, costuraria os dois textos como um poema único, em duas partes.
Toda a proposta parecia uma baita pira que o Zacca estava tirando ali (nada contra, adoro tirar umas piras com escrita também - ainda que ele tenha confidenciado que faz planos de aulas para todas as suas oficinas, de modo que só parecem piras). Apesar dessa sensação “solta”, no final, foi muito curioso como o texto foi criando corpo. Deu muito, muito certo.
Ainda não tentei reproduzir a experiência da oficina em casa para ver o que sai (nem sei se vou tentar). Reescrevi o poema algumas vezes, quebrando os versos em pontos diferentes e tirando palavras sobressalentes. Não sei o quanto tá pronto e o quanto ele ainda muda se eu mexer de novo - mas é uma versão 1 pública (depois de umas 6 versões privadas). Qualquer atualização, volto aqui para contar.
Como recomendação, já fica aqui a poesia do Rafael Zacca, as oficinas dele e a escola da palavra como um todo. Tudo muito bom pra soltar palavra presa.
🐌 E por hoje é só.
Interessante como entramos com as palavras e elas vão criando vida, sozinhas, e trazendo linhas que significam pra muita gente.