News #1 - Este texto tem um aviso de gatilho
mas o Brasil anda machucando a gente sem anúncio prévio
(AVISO: este texto fala sobre estupro e aborto)
Você é estuprada. Alguém te desautoriza da posse do seu corpo, força você a algo que não vem do seu desejo. Alguém rouba sua autonomia, invade seus limites. Você grita, chora, reza, luta. Ou trava - num silêncio desacreditado do que está acontecendo.
Agora, você é uma menina. Ainda assim, você é estuprada. Um tio, um avô, um primo. Um irmão, um padrasto. Um amigo da família, um professor. Um pai. Alguém que deveria te proteger e zelar pelo seu direito ao seu corpo. Esse homem te invade e você não entende o que está acontecendo. Você é criança. Você sente dor e vergonha, sofre. Mas não entende.
Essa grande violência - a maior de todas, deixa um resquício no seu corpo. Um feto. Indesejado, um resto, uma marca da maior violência que uma mulher pode sofrer. E agora você carrega dentro do seu corpo ainda infantil, ainda em amadurecimento, o registro dessa violência.
A maior violência que uma mulher pode sofrer - repito ainda outra vez. Isso precisa ficar marcado aqui.
Oitenta por cento dos estupros no Brasil são contra meninas. A cada 100 estupros, 80 vítimas são meninas. Você quer um dado ainda mais alarmante? Cerca de 61% das vítimas de estupros têm no máximo 13 anos de idade. Ou seja, no ano de 2023, dos 74.930 estupros registrados (muitos não são), 45.707 vítimas tinham no máximo 13 anos. Detalhe, não são exatamente 13 anos: são no máximo 13.
Muitas dessas crianças não entendem que foram estupradas até muito mais tarde, quando, finalmente, recebem algum esclarecimento sobre o que aconteceu com elas. E é sempre tarde demais. Mesmo nos casos em que a menina não engravida, é sempre tarde demais. Algo muito fundamental no núcleo da identidade daquela criança já foi quebrado. É mais uma menina que a sociedade falhou em proteger.
Em 2022, foram mais de 14 mil gestações de meninas com idades até 14 anos. Se muitas delas nem entendem que o que sofreram foi um estupro, você acha mesmo que conseguem alcançar de imediato a relação entre o ato que foi realizado contra elas e a gravidez? Frequentemente, quem nota a gravidez não é nem a própria menina: é outra pessoa (na família ou escola). Com isso, o tempo vai passando…
E por que é que eu estou falando sobre isso?
A Câmara dos Deputados está tentando aprovar o PL 1904/2024, que equipararia o aborto ao crime de homicídio, inclusive em casos de estupro.
Se 80% das vítimas de estupro no Brasil são meninas, são principalmente essas meninas que o projeto de lei vai criminalizar.
Então, você é uma criança, uma menina que só recentemente começou a menstruar. Você não sabe o que está acontecendo com o seu corpo porque, na sua casa, falar sobre sexo é tabu. Você talvez até já tenha ouvido falar, mas não sabe bem como é gerada uma criança. Você ainda é uma criança. Algum homem da sua família (ou amigo da família, ou professor, ou médico - alguém que deveria ser “de confiança”) abusa de você. Nem sempre é violento, às vezes a ação de um abusador é sutil. Você está desconfortável, mas você conhece aquele homem. Você fica confusa. Ele te manipula e impede de contar o que aconteceu para outras pessoas.
Você é estuprada e ainda não sabe, mas agora tem um feto dentro de você. Você começa a passar mal, não entende o que está acontecendo. Seu corpo não está nem maduro e, sem saber, você está gerando outro corpo dentro do seu.
Alguém te leva ao médico. Ninguém cogita uma gravidez, você é uma criança. Até que alguém dolorosamente entende o que pode ter acontecido. Desde o começo era tarde demais. Mas agora começa a corrida contra o tempo. Porque a qualquer momento você pode deixar de ser tratada como uma vítima e passar a ser vista como uma homicida. Você, que é uma criança, que sequer entendeu direito o que aconteceu.
Tic, tac, tic, tac.
É como uma bomba relógio.
O tempo urge. A mídia tem falado muito sobre certo marco de 22 semanas, quase relativizando, como se apenas fosse caber criminalização após esse período. Tipo um: “não, tá tranquilo, galera, dá pra resolver tudo antes desse prazo”. Mas, de acordo com a explicação do professor de direito Rafael Mafei, a situação é muito grave. O texto do projeto de lei sugere pena equivalente à de crime de homicídio se a mulher se submeter a um aborto “quando houver a viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas”.
Ou seja, o marco que o texto estabelece não são as tais 22 semanas, mas a viabilidade fetal, que hoje é confirmada, por meio de exames, a partir das 22 semanas. Nada impede que, com o avanço da medicina neonatal, tentem confirmar essa viabilidade cada vez mais cedo. Além disso, cabe totalmente nessa redação a possibilidade de alguma autoridade (jurídica ou médica) alegar, investigar, ou tentar provar a viabilidade fetal antes desse prazo.
Outro ponto que o Mafei traz no texto dele é que, como o texto do projeto de lei “presume” a viabilidade após as 22 semanas, não seria nem necessária a comprovação dela para realizar uma acusação criminal contra uma mulher que se submeta a um aborto após esse período - a viabilidade já teria sido presumida.
Nesse balaio de complicações, vale considerar também o quanto é difícil conseguir exercer a tempo o direito ao aborto legal no Brasil - os serviços públicos são morosos, a vítima pode ainda não ter se libertado do agressor, crenças ou preconceitos podem fazer a família da pessoa estuprada dificultar o processo.
E o tempo vai passando. Com ele, vai mudando também a identidade da pessoa estuprada, que vai deixando de ser vista como vítima para ser considerada como potencial homicida. Isso faz algum sentido para você? Porque, para mim, não faz qualquer sentido.
Inclusive vale lembrar do caso da juíza que tentou convencer uma menina de 12 anos a não seguir com aborto legal de uma gestação (de 12 semanas) fruto de um estupro. Para uma estranha parte da população, um feto é mais importante do que a vida e a integridade psicológica de uma menina de 12 anos.
Eu não queria estar falando sobre isso aqui. Eu gostaria de falar sobre arte, cultura, livros. Mas é difícil não me posicionar quando temos uma bancada na Câmara mais preocupada em impedir o aborto do que o estupro, o feminicídio, a violência contra a mulher. A mim, me parece que, impedindo estes últimos, a gente também diminuiria grandemente o primeiro. Foram 74.930 estupros registrados em 2023. Quase a totalidade de mulheres. Mais de 70 mil mulheres invadidas, violentadas, com o direito ao próprio corpo sequestrado, correndo o risco de uma gravidez indesejada, expostas às mais variadas infecções sexualmente transmissíveis.
E mulher nenhuma aborta como se isso fosse um programa legal para fazer de final de semana. “Nossa, que eu faço esse fim de semana? Hmm, acho que um aborto” - não é assim que funciona.
A mulher aborta por ter sido estuprada ou porque um homem com quem ela transou insistiu em não usar camisinha ou, pior, tirou a camisinha durante o ato sem que ela soubesse. Por engravidar de um homem que some no mundo depois de saber que ela está grávida. Por estarmos numa sociedade que não acolhe realmente as mulheres grávidas no mercado de trabalho. Por ser extremamente difícil ter uma rede de apoio que ajude a mulher a manter sua saúde mental. Por nós, mulheres, sermos sempre o elo mais fraco - é sempre na gente que a coisa quebra.
Também aborta por achar que uma criança não cabe naquele momento da sua vida, sim, mas boto minha mão no fogo para dizer que é a ínfima minoria dos casos. Na maior parte das situações, as mulheres estão apenas se defendendo de um contexto hostil à mulher, à liberdade feminina, à autonomia econômica da mulher etc.
Se a sociedade fosse melhor com as mulheres, eu tenho para mim que os abortos - sejam eles legais ou clandestinos - diminuiriam muito. E a vida e saúde de muitas mulheres seriam poupadas.
![Imagem Imagem](https://substackcdn.com/image/fetch/w_1456,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fsubstack-post-media.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2Fb41957dd-865f-403c-b4a4-eda68efd7203_680x680.jpeg)
Então, para terminar, faço minhas as palavras do Mafei e digo que se você é a favor da vida e está preocupada(o) com crianças, pode começar sendo contrário ao PL1904, já que as maiores vítimas desse projeto de lei serão “crianças estupradas que engravidam e não conseguem se desvencilhar dos agressores a tempo de fazer um aborto no início da gestação”.
Mais sobre o tema
Já desgastei o assunto e já me desgastei falando dele. Quero só colocar aqui uma única imagem, com manchetes de jornal, que falarão por mim.
Um rodapé que eu gostaria de preencher aqui é que o PL 1904/2024 não está tratando apenas do aborto em gestações no caso de estupro. Ele equipara o aborto em todos os casos em que houver a tal “viabilidade fetal” ao crime de homicídio. Meu foco neste texto foi na questão do estupro porque o aborto em caso de estupro é legal no Brasil desde 1940 e, com esse PL, a gente corre o risco de ter essa possibilidade tomada de nós, ou seja, a gente perde um direito legal adquirido há 80 anos. Isso é muito sério, é um retrocesso assustador.
Daí que, por mais que o debate sobre o aborto seja uma coisa importante de se levantar e discutir, aqui eu estou centrando só nesse pontinho único, o do direito que um monte de homem sem útero está tentando tomar da gente. O resto é assunto para outra hora.
É isso. Um beijo, até a próxima edição.
Que explicação esclarecedora, só fico pensando nos casos não denunciados. Quase 75 mil mulheres estupradas em 2023 que notificaram, imagina quantos casos não notificados que ocorrem ao decorrer do tempo