Da (im)permanência
Uma pombinha morreu no caminho que eu sempre faço da minha casa até o trabalho.
Eu a vi entre galhos e folhas e barro e entulho carregado pela enxurrada depois de uma tempestade. Ela não estava ali — era só um corpinho vazio de ave, tão pequeno que assim que passei por ele já o esqueci. Só me sobrou uma lágrima empedrada no fundo do olho e um nó na garganta.
Alguns dias depois, um gambá foi atropelado no caminho que eu sempre faço do trabalho até minha casa. Estava a uns trinta centímetros da calçada, nem sei como um carro o alcançou. Acertou em cheio, passou por cima, espalhou tudo o que ele guardava dentro. Só o percebi de relance a princípio, depois segurei o passo. Olhei. As vísceras ainda vermelhas saíam pela boquinha estreita. Não me contive, não tinha mais forças. Chorei por um gambá atropelado como se chorasse por um irmão.
Hoje, quando passei pelos mesmos lugares, o que vi foram restos secos e disformes que nem de longe lembram os bichos vivos que eles foram. Aquilo grudado no asfalto podia bem ser um pedaço de papelão, um tecido qualquer, uma planta seca, um resto. Um resto. O que sobrou das asas da pombinha se misturava a gravetos caídos das árvores e entulho de construção. Só com muito empenho enxerguei a ave que nem cheguei a ver voar.
Eu vou e volto a pé entre casa e trabalho todos os dias. Atravesso ruas e avenidas. Os carros carregam sustos e gente com raiva. Não me sinto vulnerável, mas eu sei que jogo dados como todo mundo. Jogo dados quando tranco a porta, quando lembro-esqueço de fechar o gás. Jogo dados enquanto olho-não-olho para os dois lados da avenida e atravesso, jogo dados quando desvio das poças d’água e das saúvas voltando para casa às dez horas da noite, eu nunca tinha visto uma saúva até me mudar para esse apartamento. Jogo dados pelo sexo com o qual nasci. Jogo dados.
“Seria bom continuar aqui depois que eu fosse embora”, era o que eu queria dizer quando você brincou que escreveria uma biografia sobre mim. Não disse, não queria te assustar. Além disso, eu não encheria um livro, você sabe — minha vida é toda virada pra dentro, nem tudo dá pra botar em página. E melancolia, eu sei, é uma bile difícil de apalavrar.
Para compensar essa sensação de ser tão impalpável e impermanente, tento deixar um pouco de mim em cada abraço. Todo encontro é sempre uma despedida. Sorrio muito, é da minha natureza. E cada sorriso é um pedido mudo: “lembre”. Lembrar é um jeito de me manter viva. Porque eu jogo dados. Nós todos jogamos. Mas enquanto alguém lembrar, eu ficarei aqui. Lembrar me põe viva, me impede de ser só um resto de qualquer coisa grudada no asfalto. Lembrar faz que o pássaro voe e o gambá volte todos os dias para o ninho. Ainda que não.
Quando eu tinha onze anos de idade, tive uma amiga de quem eu gostava muito. Foi minha única amiga durante os dez meses em que estudei em uma das muitas escolas pelas quais passei na infância. Ela me deu o número de telefone da casa dela na véspera da minha partida, pediu que eu ligasse, disse que continuaríamos amigas. Fui embora. Eu não tinha telefone em casa, demorei uns dois meses para conseguir que minha mãe me levasse até um telefone público para fazer a ligação. Ela atendeu.
Não lembrou de mim.
Eu tive que explicar quem eu era, descrever as lembranças que tínhamos construído juntas. A conversa não engatou. Foram dois ou três longos minutos de estranhamentos e silêncios ao telefone — meu peito doendo sem que eu entendesse direito por quê. Assim que desliguei, joguei fora o papel onde estava escrito o número dela.
(Minha vingança foi esquecer o nome dela. Já nem sei com que letra ele se fazia. Não sei que rosto ela tinha.)
Tenho dificuldades com (im)permanência desde então. Sempre sinto que se eu ficar ausente por tempo demais, vou ser esquecida por todas as pessoas que amo ou com quem já convivi. Isso me assusta e me deixa num meio de caminho: às vezes desapareço, flertando com a invisibilidade de morar dentro do esquecimento, às vezes me agarro ao desejo de permanecer. Mas sigo sorrindo um desejo cheio de dentes de não cair de novo no silêncio daquele estranho telefonema que me rasgou pela primeira vez e me mostrou, criança ainda, que viver é feito de encontros e desencontros. Viver é feito de inícios e fins.
Sobre o texto:
Essa crônica/reflexão é do final do ano passado (2019). Escrevi depois de uma sequência de dias chuvosos como esses pelos quais estamos passando agora (agosto de 2020). Acredito que as angústias seriam renovadas se ele fosse escrito hoje, depois do COVID-19 e de mais de 100 mil mortes no Brasil. Mas como a proposta do texto se encerra nele, achei que não precisava de uma atualização. A cada dia, o seu mal.
Para que conste: não sou/estou triste, gosto de dias de chuva, de sopa e de chocolate quente. O texto é fundo, mas eu sou sempre bem mais feliz que triste. Favor, não confundir a voz do texto com a minha :)
Da (im)permanência was originally published in Maria do Ingá on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.